terça-feira, 3 de março de 2009

Discutindo Literatura - Edição 14

Vale à pena ler essa revista - Como o próprio nome diz, "Discutindo Literatura" é um prato cheio para os amantes das letras... Vamos saborear!





UMA REFLEXÃO ÉTICA SOBRE MEDÉIA



Talvez o fato que cause maior estranheza ao leitor moderno de tragédias senequianas seja a coincidência temática com outras obras, mormente com as trágicas gregas, e nesse caso específico com Medéia de Eurípides. Isso ocorre por conta do desconhecimento de alguns conceitos “literários” antigos como imitação e emulação. Esse mesmo tema, após sua primeira apresentação com Eurípides, foi, pelo menos, três vezes retomado por outros autores: Sêneca, no primeiro século de nossa era; Corneille, no século 17, e, mais proximamente, na década de 70, com a montagem da “Medéia brasileira” de Paulo Pontes e Chico Buarque, no musical Gota d’Água. Em todas as versões, a magistralidade do texto cumpre a função precípua da tragédia: o efeito catártico, e, exatamente por isso, nos faz refletir acerca da permanência dos mitos.

Representação poéticaO argumento dessa tragédia – fundado na última parte da lenda de Jasão e Medéia, cujo ciclo inicia com a viagem dos argonautas para conquistar o velocino de ouro e termina justamente com a trágica sina da filha de Eetes, rei da Cólquida (atual Geórgia) – representa o limite a que pode chegar a alma feminina diante da recusa amorosa. Sêneca produz a combinação entre imaginário e real. Faz com que a lenda escorra na realidade e passe a perpetrá-la. Tem-se a nítida impressão de que seus textos não contam uma lenda, mas algo real que pode vir a se tornar lenda.

Com um nome que é cognato do verbo grego cujo significado é engendrar, calcular, produzir, tramar, maquinar, Medéia nasce na Cólquida, região dos ungüentos, dos tônicos e dos venenos. Sua habilidade “farmacêutica” é notória, e dela se utiliza, por vezes, para conduzir suas ações. Por outro lado, suas relações de parentesco não lhe comovem, não se inibe diante da possibilidade de matar um irmão ou trair o pai. Sempre o que a move é o imponderável, o inesperado.
Pontilhada de momentos patéticos, a tragédia adquire contornos interessantes, uma vez que é desvendado logo de início o fato motivador do enredo (o repúdio de Jasão), porém a ação é conduzida para a catástrofe aos poucos, e os acontecimentos soam absolutamente naturais, como fruto da própria necessidade. A protagonista mescla momentos de fúria – como os gritos e as maldições que saem do interior de sua casa ao ser repudiada – com os de uma absoluta racionalidade.

A mistura de horrores e racionalidade é a característica da protagonista. Se, de um lado, se vê fragílima, diante do abandono; de outro, é forte o suficiente para produzir “remédios”para o seu mal. Se, de uma parte, é capaz de voltar-se contra o pai e o irmão; de outra, é capaz de construir aos poucos, “em doses homeopáticas”, sua vingança contra Jasão, seu grande amor. Tais contrastes, que despontam das ações, produzem efeito singular na personagem. Mas, o que a audiência deve pensar sobre Medéia, será fruto do ódio ou da compaixão?


A tragédia de Sêneca, nesse sentido, nos propõe também reflexão ética, dado que nos faz optar ou não por um posicionamento sobre uma circunstância hedionda diante da qual não hesitaríamos nem um instante sequer se observada hoje
na nossa vida cotidiana. Alguém que mata os próprios filhos é inominável. Porém, lá hesitamos por risco e conta de uma efabulação cuja genialidade transcende às expectativas éticas do mundo contemporâneo, ou mesmo do antigo. Não estamos mais diante do “erro” de Édipo. Nela, a catástrofe é calculada, meditada e levada a termo sem qualquer pudor, e, mesmo assim, a dúvida permanece.

Medéia encontra seu caminho, pois antes não sabia o que faria para se vingar. Mais uma vez opera o confronto de duas possibilidades concretas. Dubiedade e duplicidade, esse é o sentido. Seus dois filhos serão, ao mesmo tempo, vingança e instrumento de vingança. Ao enviar seu presente de escusas a Creúsa e a Creonte, utiliza mais uma vez suas habilidades de feiticeira, as mesmas que selam o destino dos próprios filhos, pois ao tomarem contato com o veneno do presente, não poderão mais sobreviver. Simultaneamente, apesar do amargor e da tristeza que isso lhe traz, mata-os e finaliza a segunda parte da vingança, sendo a morte dos meninos a própria vingança contra Jasão.
Sob a perspectiva do mundo grego e romano, é interessante observar o desfecho proposto, uma vez que Medéia não é pólo passivo de punição pelos assassinatos que comete e foge de Corinto na carruagem do Sol. Dessa maneira, movida por um amor desmedido, o mesmo que a colocou contra o próprio sangue duas vezes, Medéia representa e é engendrada pelo binômio amor e ódio no limiar desses dois sentimentos, dessas duas afecções, que ora são patéticas, ora éticas.Além disso, simboliza em essência a capacidade de reação transformadora e de conversão, utilizando-se de sua absoluta racionalidade para dar fim ao seu sofrimento irracional. Na batalha de sua alma, entrechocam-se o desejo de vingança e o amor pelos filhos.
Assim, seja pela absoluta humanidade, seja pela grandeza de sentimentos que dissemina, Medéia pode ser considerada, como quase toda obra de Sêneca, retrato fiel da alma humana, com seus contrastes e devaneios, com sua fúria e seu amor. Nela, o que observamos é o espaço do homem como nós, ou melhor, do mito do homem comum, com limites e profundo realismo de sentimentos.
Paulo Martins é doutor em Letras Clássicas pela FFLCH-USP e professor da mesma universidade.


A APROPRIAÇÃO TEMÁTICACOMO ELEMENTO POSITIVO
Na Antiguidade clássica greco-latina, não havia o conceito de plágio nem de originalidade, que só aparecem no fim do século 18 com a disseminação da imagem do autor como ser diferenciado, que, platonicamente, possui uma relação especial com o divino e, por força de conseqüência, detém uma habilidade ímpar, original e sem precedentes.
Para os antigos, a apropriação temática a título de imitação era salutar e, mais, era uma referência para a observação do engenho (ingenium), capacidade de propor soluções textuais melhores e, nesse sentido, de superar o modelo inicial (aemulatio/emulação). Dessa forma, a teoria autoriza uma aproximação entre êmulos, no caso Eurípides e Sêneca.
A distância entre Sêneca e Eurípides reside justamente na ausência de teatralidade do primeiro em relação ao segundo. As peças de Sêneca, seguramente, foram escritas para serem lidas e não para serem encenadas, o que aristotelicamente retira da estrutura trágica, com a qual deve preocupar-se o tragediógrafo, aquilo que o filósofo grego chamou ópsis, a encenação. Isso, contudo, não impede que seu texto explore aspectos fundamentais como a perfeita construção dos caracteres (os éthe). Suas personagens são extremamente vigorosas e ricas.