domingo, 12 de abril de 2009

Discutindo Literatura - Edição 16


Abapuru - Tarsila do Amaral


O Manifesto Antropófago e suas

idéias sobre pluralidade

cultural e assimilação crítica completam 80 anos e

continuam, neste novo milênio,

cada vez mais atuais


O Manifesto Antropófago foi publicado em 1º de maio de 1928, no jornal Diário de São Paulo. De todas as iniciativas renovadoras

propostas por Oswald de Andrade, talvez tenha sido essa a mais visionária. Em sua obra Vanguardas Latino-americanas, Jorge Schwartz assim analisa a antropofagia oswaldiana:

“O dilema nacional/cosmopolita é resolvido pelo contato com as revolucionárias técnicas da vanguarda européia, e pela percepção da necessidade de reafirmar os valores nacionais numa linguagem moderna. Assim, Oswald transforma o bom selvagem rousseauniano num mau selvagem, devorador do europeu, capaz de assimilar o outro para inverter a tradicional relação colonizador/ colonizado”. Tudo, evidentemente, no plano cultural.
Schwartz cita ainda o artigo “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, escrito por Haroldo de Campos, em que este afirma:
“(...) é o pensamento da devoração crítica do legado universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ (...) mas segundo o ponto de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação: melhor ainda, uma ‘transvaloração’: uma visão crítica da história como função negativa (...) capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado que nos é ‘outro’ merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. Com esta especificação elucidativa: o canibal era um ‘polemista’ (do grego, pólemos: luta, combate), mas também um ‘antologista’: só devorava os inimigos que considerava bravos, para deles tirar proteína e tutano para o robustecimento e a renovação de suas próprias forças naturais (...)”.
A origem do movimento antropofágico é curiosa. Em fins de 1927, Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral, sua mulher, foram, com amigos, para um restaurante a fim de comer rã. Enquanto esperavam, começaram a inventar teorias imaginárias acerca da rã, e alguém disse, em tom jocoso, que a história da evolução humana passava pela rã. Quando o prato chegou, Tarsila comentou que naquele momento eles poderiam ser considerados uns “quase-antropófagos”. No aniversário de Oswald, Tarsila o presenteia com um quadro, inicialmente chamado “o homem plantado na terra”. Foram ao dicionário de tupi-guarani e deram outro nome à tela: Abaporu (aba, “homem”; poru, “que come”). Assim, nascia o movimento da antropofagia, radicalmente primitivista.
O movimento antropofágico gerou a Revista de Antropofagia. Publicada em São Paulo, ela teve duas fases ou “dentições” – nomenclatura mais adequada segundo os antropófagos.
A primeira, entre maio de 1928 e fevereiro de 1929, e a segunda, de março a agosto de 1929. De acordo com seus criadores, a pluralidade ideológica era preponderante. A Revista de Antropofagia dizia não ter “orientação ou pensamento de espécie alguma: só tem estômago”.
Na primeira fase, iniciada com o Manifesto Antropófago, observam-se tendências ideológicas contraditórias: ao lado dos artigos revolucionários de Oswald de Andrade, Alcântara Machado, Mário de Andrade e Carlos Drummond, encontravam-se textos de Plínio Salgado, fortemente marcados por um nacionalismo ufanista, identificado com o fascismo.
Na segunda fase da revista, ocorreram algumas dissidências entre os grupos modernistas, inclusive a ruptura entre Oswald e Mário de Andrade. Mantiveram-se antropófagos: Oswald, Raul Bopp, Tarsila e Patrícia Galvão, a Pagu.

Baque de 1929

No final de 1929, a grande crise mundial surpreendeu financeiramente Oswald, sobretudo com a queda do preço do café. Naquele ano separou-se de Tarsila e envolveu-se com Pagu, com quem teve o filho Rudá (“o deus do amor” em tupi).
Em 1931, Oswald e Pagu conheceram Luís Carlos Prestes, então exilado em Montevidéu. Sob influência dele, filiaram-se ao Partido Comunista Brasileiro, e lançaram o jornal O Homem do Povo, no qual atacavam violentamente o capitalismo e a moral burguesa. Em razão da militância e da literatura de caráter político, ambos foram presos. Oswald foi cinco vezes para a cadeia e Pagu chegou a ser violentada nos porões da ditadura Vargas. Oswald passou a colaborar no Correio da Manhã, na Folha de S.Paulo e em O Estado de S. Paulo, e em seus artigos combateu ferozmente o Estado Novo. Em 1945, rompeu com o Partido Comunista.
Paralelamente a essas dificuldades, a década de 1930 foi um período economicamente crítico para Oswald, quando pediu bastante dinheiro emprestado e hipotecou alguns bens. Além disso, manteve outros conturbados relacionamentos amorosos.
A única brisa ocorreu em 1942: conheceu Maria Antonieta d’Alkmim, o grande amor de sua vida, com quem se casou em 1943 e com quem teve dois filhos: Antonieta Marília de Oswald de Andrade e Paulo Marcos.

No final da década de 1940, Oswald conheceu os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, jovens poetas que liderariam o movimento da poesia concreta. Além deles, Antonio Candido, na época um jovem professor da Universidade de São Paulo (USP) e que viria a se tornar um dos maiores críticos de literatura brasileiros e o grande recuperador e divulgador da obra de Oswald.

Vítima de diabetes, o autor tinha a saúde precária e ao mesmo tempo se agravavam seus problemas financeiros. Prestou concurso na USP para docente, foi aprovado, mas não chegou a dar aula, mantendo apenas o vínculo com a instituição.
Conexão tropicalista
Quem realmente consegue enxergar as idiossincrasias oswaldianas há de saber que ele não apenas produziu literariamente como vanguardista, ele viveu como um. Esteve acima do cárcere da moral burguesa e da opinião alheia. Sua inteligência agudíssima, sua criatividade incomum e sua sensibilidade singular tornaram-no um precursor legítimo da modernidade. Em qualquer lugar do mundo que tivesse nascido e vivido, Oswald reluziria.
Poucos anos depois de sua morte, paradoxalmente, seu tempo chegou: a contracultura e a revolução sexual poriam em prática a liberdade moral e artística pela qual ele lutou. Seus escritos foram pouco a pouco reeditados e tornaram-se objetos de estudo em universidades. Pouco depois, seria estudado nas escolas regulares de ensino médio. Só em 1967, suas peças de teatro ganharam encenações.
O movimento tropicalista, que sacudiu o país no final da década de 1960 e lançou nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e Os Mutantes, aconteceu confessadamente sob influência do Manifesto Antropófago e de Oswald, que capitaneou a Antropofagia há 80 anos.
Em sua obra, investiu contra aqueles que “fazem da vida um campeonato de tédio edificante”. Foi melhor prosador que poeta, mas, tanto na prosa como na poesia e no teatro, foi um revolucionário.

MANIFESTO ANTROPÓFAGO
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o

mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy- Bruhl estudar.

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.



Catiti Catiti

Imara Notiá

Notiá Imara

Ipeju



A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

O pater familias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real

das coisas + fala [sic] de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transferese. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de
Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape [sic] típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

Oswald de Andrade

Em “Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo

Sardinha” (Revista de Antropofagia, nº 1, maio de 1928).